domingo, 31 de outubro de 2021

Recomeçar na busca por respostas

O título do projeto é provocativo: “Respostas para o amanhã”, feito pela Samsung, numa iniciativa global que estimula estudantes do ensino médio de escolas públicas a identificar problemas reais e desenvolver soluções baseadas em ciência e tecnologia. A gigante da informática tem, no seu lado social, um desafio que provoca e desacomoda alunos que estão chegando ao final de seus cursos e necessitam apresentar um trabalho de conclusão. Os grupos precisam “ralar” para encontrar um problema e, na sequência, uma solução simples com potencial de melhorar a vida das pessoas.

Depois de assistir matéria com a Maria Eduarda, a Clara e a Thielly, alunas da Escola Técnica Liberato Salzano da Cunha, em Novo Hamburgo, fiquei curioso com o projeto científico que reutiliza a fibra do caroço da manga, transforma em bioplástico e faz a diferença para as inúmeras embalagens que, jogadas no lixo, levarão muito tempo para se decompor. O experimento provou ser útil para serviços como lanches e, depois de usados, em três semanas, absorvidos pela natureza. O que era observação caseira, tornou-se solução para um dos grandes problemas da atualidade.

Não é sem motivo que as estudantes chegaram à final do prêmio nacional de ciências. As meninas tiveram que se esforçar muito para estar no meio de tantas iniciativas inovadoras como o sistema de irrigação alternativo de baixo custo; combate aos carunchos; extratos vegetais e biofilme orgânico; descastanhador môsa (não tenho nem ideia do que seja); pulseira alarme; reabilitação pulmonar alternativa; sistema solar de purificação de água; reaproveitamento de resíduos orgânicos para a produção de biogás e tubete agrícola de bioplástico a partir de blendas de nanocelulose.

Se você não entendeu alguns destes nomes, não importa. Também não entendi. Importa que existem jovens motivados por autênticos educadores, fazendo a diferença no que se refere ao seu futuro e pensar novos caminhos para a humanidade e o planeta. Investem as inteligências e os recursos que conseguem colocar à disposição em olhar para o outro de forma solidária, em áreas que passam por alimentação, segurança, saúde - cuidados com as pessoas e com a “casa comum”, a Terra. Em meio a perspectivas difíceis, um sopro de esperança para a melhora de vida de suas comunidades.

A experiência que as alunas passam vai marcar as suas vidas. Premiadas ou não, mostraram para seus colegas e para a sua vizinhança que o laboratório (não somente no sentido físico, mas de vida) que passaram na escola é, exatamente, onde podem acertar ou errar, mas não podem desistir. Fazer com que sintam que vale a pena (motivação) é papel do professor/educador, que não tem somente a preocupação de passar o conhecimento científico, de forma decorada, para atender a uma prova, mas alcança o horizonte por onde se vislumbra e se chega ao atendimento das demandas sociais.

“Respostas para o amanhã” não é apenas um projeto escolar desafiando estudantes a colocarem a massa cinzenta para funcionar, além da fronteira curricular. Pode ser uma perspectiva de saída da pandemia. Serão muitas as dificuldades, em especial para grupos sociais mais pobres. O “amanhã” nunca é tão longe que se possa postergar a decisão de dar novo sentido à vida. Abraçar uma causa é sempre o jeito de não olhar apenas para as próprias fragilidades, mas a compreensão de que meu pequeno mundo - físico, mental, espiritual - é, sim, o começo de uma significativa resposta!

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Refugiados e o sínodo: um missionário da esperança

Lesbos é uma ilha grega no nordeste do mar Egeu. Localizada em ponto estratégico entre países do Oriente Médio e a Europa, acabou sendo ocupada por refugiados que fogem das perseguições políticas, étnicas, religiosas ou, até, da fome, nos seus países. Cinco anos depois que o papa Francisco, junto com o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu I, esteve na área, num dos momentos mais delicados desta crise humanitária, o pontífice volta a programar viagem à Grécia, na qual quer visitar os campos de refugiados de onde levou para o Vaticano três famílias.

A viagem acontece pouco tempo depois que Francisco abriu o maior processo de consulta democrática da história da Igreja Católica, por meio de um sínodo, que lançará bases para o futuro da instituição. Serão dois anos de consultas, espaços de reflexão e debates abertos a fiéis do mundo inteiro, começando em 10 deste mês e seguindo até outubro de 2023. O tema proposto é “por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. A sinodalidade, ou como é dito na consulta para “caminhar juntos” é uma expressão relativamente fácil de ser dita… mas difícil de ser praticada.

E o papa sabe disto. Desde que lançou sua proposta de uma “Igreja em saída”, na exortação apostólica “A alegria do Evangelho”, sofre muito com a ala conservadora da instituição que, silenciosa e persistente, vem conseguindo colocar de lado o espírito do concílio Vaticano II. Passados 60 anos, Francisco sente que é tempo de recuperar uma caminhada baseada em princípios evangélicos, com uma doutrina social capaz de lhe dar respaldo para as cobranças que faz no âmbito religioso, mas também no mundo da política, da economia e das relações internacionais.

O sínodo é um jeito de arrumar a casa. Mal comparando, é como uma família que vai viajar, mas precisa, antes, deixar tudo organizado. Se apenas uma pessoa fizer isto, demora muito tempo, mas se o grupo trabalhar unido fica mais fácil e melhor, podendo, depois, usufruir o prazer do convívio. Mesmo que toda a comparação seja manca (e é sempre preferível caminhar mancando do que não caminhar…), é a forma de dizer que, depois da crise do coronavírus, a Igreja, sob o comando de Francisco, tem uma oportunidade de mostrar a sua face de irmã responsável e solidária.

Lesbos e o sínodo são partes de um grande esforço de Francisco para renovar o rosto da Igreja. Mantendo as marcas da sua idade e a capacidade de expressar o que lhe vai no coração, que se transforma em solidariedade e esforço em caminhar junto com a humanidade, que vive suas alegrias e tristezas. Nas rotas por onde passam os migrantes ou por onde se dão as grandes discussões da sociedade, há uma figura que dá norte à embarcação, mesmo em meio às tormentas. Alguns até já colocaram salva-vidas, acreditando que, se não for feito como querem, o desastre é iminente…

Outubro, para cristãos católicos, é mês missionário: apresenta Jesus em missão e desafia seguidores a se desacomodar, sem proselitismo, nem deixar de falar o que viram e ouviram. Num Mundo cansado de falsos profetas, espetáculos midiáticos e contratestemunho, Francisco não cansa. Com 85 anos, possivelmente tenha mais dois ou três anos de atuação, quem sabe cinco, mas deixa sua marca: anda pelas periferias físicas e existenciais, toma nos braços - e por isto mesmo é condenado - suas dores e suas causas. Refugiados e o sínodo, o Mundo já tem o seu missionário da esperança!

domingo, 24 de outubro de 2021

O “Brasil honesto” e o “Brasil solidário”

Uma das perguntas que se faz em tempos turvos de política e políticos que esquecem as origens e a sua real função é: o Brasil tem jeito? Parece apenas um jogo de palavras, mas confesso: não sei se o Brasil tem jeito... mas sei que o brasileiro tem. Como consequência creio que, mesmo com dificuldades - e precisando de muita dedicação ao processo de recuperar referências morais e éticas - o país também pode retornar ao seu eixo. Das estatísticas que preocupam, avança o desemprego e o número de quem não alcança o mínimo necessário para se alimentar, já na casa dos 20 milhões.

Terça-feira, o jornalista Nílson Souza publicou sua coluna em Zero Hora, com o título “o Brasil honesto”. Contou o caso de Rodeio, em Santa Catarina, onde funciona um comércio sem atendente para o controle. Embora o ceticismo de muitos, quase o total da população, especialmente de baixa renda, que recorre ao “mercadinho”, paga as suas compras. Ainda deixa uma lista dos produtos que leva para casa, facilitando a reposição dos estoques. O comércio foi batizado de “Dr. Honesto” e faz parte do trabalho da Assistência Filantrópica Vida Nova, que atua na acolhida a moradores de rua.

Se a atividade já era digna de louvor e de apoio, ficou ainda mais interessante quando os repositores revisaram as listas e encontraram um recado: “vim através deste bilhete informar que peguei algumas coisas para o café com meus filhos. Mas não vou roubar. Quando tiver (dinheiro), prometo devolver. Obrigada”. E as iniciais da mãe preocupada em conseguir alimento para os filhos: dois pães, pote de doce e pacote de “cuecas viradas” que, somando, daria em torno de 30 reais. Uma iniciativa em que as pessoas tomam o que precisam, mantendo a dignidade do anonimato.

Se parasse por aí, a história já seria interessante. Mas ficou mais ainda quando o episódio foi divulgado. Como escreve Nílson Souza, o “Brasil honesto” despertou o “Brasil solidário”, pois compradores habituais passaram a deixar dinheiro a mais que o valor de suas compras informando que seria para compensar o que a mãe pegou para alimentar os filhos. A consciência de que a iniciativa do pequeno comércio, que beneficia muitos dos que estão no degrau mais baixo do consumo, pode ser capaz sensibilizar e provocar a partilha até do pouco que ainda lhes resta…

Duas atitudes: a mãe que usou da honestidade ao confessar a sua situação de penúria, “pagou com a moeda da sinceridade”. O bilhete era um grito silencioso do desespero de não poder oferecer aos filhos aquilo que é o trivial na maior parte das casas: alimentos básicos para uma refeição. Por outro lado, as muitas respostas em forma das minguadas quantias que eram a possibilidade de seus doadores, fazendo de seu gesto de desprendimento o apoio necessário para que a mãe não desista, insista e se mantenha firme, buscando todas as formas de fazer o seu amor pelos filhos valer a pena.

Tendo visto tanta coisa acontecer, é provável que algumas pessoas torçam o nariz e digam: “isto é exceção!” Pois são as exceções que abrem brechas nos sistemas para fazer as mudanças. O “Brasil honesto” inicia com pequenos gestos, que não aparecem nos meios de comunicação, em meio aos escândalos do dia a dia. São vistos por estradas, ruas e becos… onde um brasileiro ainda afirma: “a educação foi tudo o que meus pais me deixaram”. No mesmo arcabouço onde mora a honestidade e o sentido de que se possa ter à mesa “dois pães, um pote de doce e um pacote de cueca virada”.

(íntegra do texto de Nílson Souza em - https://www.pressreader.com/brazil/zero-hora/20211019/281573768890384)


terça-feira, 19 de outubro de 2021

“Ipê do Amor” – com gostinho de Primavera…

Gosto dos ipês que colorem praticamente toda a Primavera. Aquele tronco delgado ostenta uma coroa de flores que pode ser amarela, branca, rosa, roxa ou, imaginem, já temos até um ipê verde! A flor, em forma de cornetinha, desabrocha de junho até o final do ano, e se transformou em símbolo nacional. Somente começa a fenecer quando, ao iniciar novembro, chegam os ventos de Finados. Por ruas e parques, vê-se uma abundância de cores, que deixa, enfim, um tapete digno de que se desfile por ali a energia e o vigor que sonham em despertar com o gostinho de Primavera.

Pois neste mês de outubro, tradicionalmente utilizado para conclamar as mulheres a fazerem suas revisões de mamas, como prevenção de um câncer que tem reais possibilidades de cura quando detectado e tratado com a prevenção, está sendo lançado o projeto “Ipê do Amor”. A parceria entre a Prefeitura de Pelotas, o Instituto Buquê do Amor e Ciclos Saúde Singular está fazendo uma “negociação”… é bem simples, você contribui com o projeto que estimula os exames e vê a renda revertida para a aquisição do material necessário às mamografias. É ou não é um baita negócio?

O Outubro Rosa tem forma e densidade. Com a efetiva participação de um número cada vez maior de mulheres (os homens têm o seu Novembro Azul, que está longe dos resultados conseguidos por elas…), constitui-se em marco para que se possa ver a luz no fim do túnel. Evitar a perda de vidas com ações relativamente simples, mas que necessitam de conscientização e adesão. Não é apenas a decisão da mulher, mas do casal, da família, do grupo de amigos… A palavra de estímulo que não se cala diante da atitude negativa, mas insiste em preservar a vida de quem se ama.

Em tempos de “modernidades” para uns e apatia para outros… o que se faz necessário é exatamente o objetivo da campanha: compartilhar informações, não apenas do câncer de mama, mas também do câncer de colo do útero. Reconhecimento de que a doença não é mais sentença de morte, mas luta a fim que todas tenham acesso ao diagnóstico, tratamento e medicações para reduzir o impacto sobre o corpo e a letalidade. A informação, acompanhada da conscientização, é a moeda de ouro para que se pressionem instâncias governamentais do quão ainda estamos longe dos cuidados ideais.

Esta é uma luta que não dói apenas em quem a vive. De uma forma ou de outra, todos os que estão próximos acabam sendo afetados. A fragilidade de quem inicia um tratamento vem acompanhada de medos e incertezas que, querendo ou não, transpiram e afetam a família e o grupo de amigos. Uma “nova normalidade” vai depender do entendimento de que não há culpas no que se passa e sequer uma maldição que se abateu sobre aquela pessoa. Pais, filhos, companheiros (as), irmãos precisam de informação e acompanhamento para se transformar numa fortaleza de amor e de aconchego.

“Ipê do Amor” com gostinho de Primavera. Enxertos serão “trocados” por uma contribuição mínima de 50 reais. Quem colabora recebe mais do que uma muda, coloca no pátio ou na frente da casa um símbolo de solidariedade. As árvores que se desenvolvem a partir deste ano são o compromisso de quem se trata, junto com amigos e familiares, de que cada novo centímetro agrega a certeza de que se vai vencer. Não desaparecem as dores e os incômodos do tratamento, mas o fardo se torna mais leve porque vem acompanhado de carinho e concretiza um sinal de esperança!

domingo, 17 de outubro de 2021

Mulheres que dão sentido às palavras

O boteco do meu pai - que orgulhosamente chamava de bar e armazém Raulin - foi a única atividade que teve quando chegamos de Canguçu. A transição de agricultor e prestador de serviços em granjas para o atendimento de público não deve ter sido fácil. Mas se confirmou o dito de que “ao lado de um grande homem, tem sempre uma grande mulher”. Nunca vi o pai e a mãe discutir, se revezavam atendendo. Durante o dia, as necessidades básicas para as refeições e, ao final da tarde, os vizinhos que voltavam do trabalho e queriam tomar um aperitivo antes de chegar em casa.

Um dos pontos fortes era a venda de querosene (naquele tempo não havia energia elétrica na Vila Silveira e se usavam lampiões), que reforçaram com uma cancha de bocha, além de carnear pequenos animais (lembro de porcos), vendendo as carnes e miúdos e, coroando tudo, assando a cabeça do bendito bicho para um sorteio que sempre tinha uma grande procura. Entregue com o reforço de uma garrafa de vinho. Esta já era a parte da mãe. Que ainda capitaneava parentes que vinham ajudar para transformar uma parte em embutidos, especialmente morcilhas e linguiças.

A dona França ainda era responsável por cuidar da venda, depois do almoço, quando o pai tirava uma sesta. A hora era calma e ouvia suas novelas preferidas pelo rádio, acompanhada de uma das vizinhas, ainda lembro da Cenaide e da Izalbina… Mas os tempos eram bicudos e tinham quatro filhos para criar. Novamente, a contribuição vinha da mãe, que costurava, tricotava e produzia as “sobre-meias” (ainda lembram, Mano/Dario e Ângela?), com lã grossa que se colocava sobre as outras mais finas, em dias muito frios, e que se podia andar com elas por dentro de casa.

Também haviam os “quitutes”… Um bom jeito de minimizar o efeito do álcool do martelinho eram os ovos, devidamente cozidos e postos em conserva. Ou petiscar um torresmo feito com parte da gordura e das carnes de porco. Para quem preferia os doces, havia as tradicionais rapadurinhas, tanto as de amendoim moído (paçoquinhas), quanto as “quebra-queixo” caseiras, à base de calda de açúcar e amendoim. Sem contar a produção de mocotó, que, naquele tempo, era uma iguaria de fim de semana, com a preparação iniciando sábado de madrugada e entrega no domingo ao meio-dia.

Conto tudo isto para prestar homenagem às mulheres que trilharam, par e passo, os difíceis caminhos de migrarem do interior para reiniciar a vida em busca de melhores condições para suas famílias. Já escrevi sobre a dona Braulina, a mãe da Neida, que praticava a solidariedade sem ter noção do significado desta palavra. Mas que fazia dos seus gestos e atitudes uma demonstração viva da sua generosidade. Pois a mãe, pra mim, é sinônimo de mulher empreendedora, que não se curvou à pobreza, mas se “reinventou” e se fez companheira de uma longa e penosa jornada.

Mulheres que dão pleno significado às palavras. Sensíveis quando levantam os olhos em direção ao outro, sabendo de suas fragilidades e que fazem a diferença. A prática de conceituações positivas – como solidariedade e empreendedorismo – é um sonho. O sonho da humanidade de compreender, no dia a dia, o valor e a extensão de cada conceito. Somos bem mais do que nossas palavras, que se manifestam em atitudes, gestos, carinho, compreensão, a responsabilidade de uns pelos outros! Um desafio para, em qualquer situação, não ficar sós e não permitir que alguém agonize na solidão!

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Os brasileirinhos órfãos da pandemia

Quando o Brasil chega à marca das 600 mil vítimas do coronavírus, o país sente que o avanço da vacinação, embora não seja no ritmo ideal, já consegue mostrar um refluxo no número de mortes. Ainda com a necessidade de continuar tomando todos os cuidados necessários para o convívio, a imunização lança uma boa perspectiva, sem abrir demais a guarda, aprendendo com aqueles mais afoitos que já se sentiam “seguros”, liberaram geral, e pagaram o preço de ter que voltar atrás. A pandemia que ocupa o nosso dia a dia dá lições e liga o sinal de alerta e de cuidados.

Os estudiosos começam a pensar no pós-pandemia, com as consequências que ficam em todas as áreas: o empobrecimento, especialmente daquela população que passava mais dificuldades; a educação, que durante este tempo teve arremedos de um processo que já vinha se deteriorando; até as relações de grupos sociais, religiosos, políticos, que viram o afastamento com uma forte preocupação. Mas também uma parcela ainda não dimensionada que não soube lidar com as restrições e tornou-se reclusa de seus medos, tendo como consequência o aumento da depressão.

Outros problemas ainda transitam pelos corredores silenciosos das estatísticas. Ali vão se revestindo de significado quando ganham rostos e corpos na realidade social. Infelizmente, o caso das crianças e adolescentes – na casa dos 113 mil brasileirinhos – que perderam o pai, a mãe – ou ambos, assim como uma avó ou avô, responsável pela sua guarda. No mundo, o número já passa de 1,5 milhões de órfãos, de acordo com estudo publicado pelo periódico científico Lancet. A perda é significativa porque representa a ausência de uma referência familiar, assim como do seu sustento financeiro.

Susan Hillis é pesquisadora de doenças infecciosas. Lidera um estudo que apontou o Brasil como o segundo país mais afetado pelo problema, atrás, apenas, do México. Avisa: “a cada 12 segundos, uma criança ao redor do planeta perde um dos pais ou um dos avós cuidadores por covid-19… Se você parar agora e contar até 12, é o tempo que basta para haver um novo órfão por covid-19 no mundo!” Classifica a orfandade deixada pela pandemia como uma “epidemia escondida dentro de outra”. Com muitas e dolorosas consequências para o desenvolvimento da criança ou do jovem.

Está na hora tomar medidas concretas com relação a esta parcela da população que não pode representar apenas mais um número nos noticiários. Cientistas alertam para a necessidade de intensificar a vacinação, prevenindo a morte dos pais; quando um deles for hospitalizado, ajudar a preparar a perda, com a mobilização governamental e de grupos sociais; e medidas públicas que atuem na proteção social. É bom que se pense na recuperação econômica do país, mas não terá sentido sem assegurar a subsistência daqueles que já foram chamados de “o futuro do Brasil”.

Perder um pai ou uma mãe por idade ou doença previsível tem o sentimento de separação que precisa de um longo tempo para ser aceito. A ausência brusca faz perder as referências e torna o menor um vulnerável na estrutura familiar. Não é somente uma questão política a ser resolvida, mas de humanidade, restaurando o próprio tecido social. Facho de esperança que conjure o melhor que se tem em cada um e minimize o sentimento de que, além de seus entes queridos, esta criança também ficou órfã de uma sociedade que a marginalizou, exatamente, quando mais necessitava…

domingo, 10 de outubro de 2021

O vinho que vira vinagre…

A Polícia Federal batizou mais uma operação. Mas não pensem que saiu à cata de corruptos, políticos do colarinho branco, traficantes ou qualquer outro crime já tão em voga. Para localizar e apreender o “meliante”, classificou de “Borgonha”, a famosa região da França, produtora de vinhos do mesmo nome. Estavam atrás de duas garrafas do fruto da uva que, no mercado, são vendidas pela bagatela de 56 mil reais. Claro que qualquer um de nós tem uma delas sobre a geladeira e os servidores terceirizados que desviaram podiam, com seus salários, comprar algumas dezenas…

A notícia veio a público depois que o Ministério do Exterior fez uma checagem na sua adega/cofre particular e desnuda alguns dos costumes da nata de nossos administradores, que se estende também ao mundo do Judiciário e do Legislativo. Os salários e penduricalhos não são suficientes para saciar a vontade de espremer e colocar no bolso aqueles recursos que deveriam bancar os serviços públicos. Precisam, ainda, de mordomias como as que seguidamente os meios de comunicação denunciam, através de cardápios e serviços que poderiam ser bancados pelo próprio bolso.

Em contraste com os bem nutridos políticos e administradores, vê-se a sociedade desdobrar-se para enfrentar a fome, problemas de moradia, saúde, segurança… As campanhas para arrecadar alimentos e roupas já não são a exceção, mas a regra. Diariamente, seja pelas entidades das quais se participa ou pela mídia, organizações buscam sensibilizar para que se ajude a suprir a ausência do estado numa situação que se tornou rotina. Perdeu-se a capacidade de se indignar diante de casos em que famílias apresentam geladeiras vazias e crianças esperam por um prato de comida.

Diferentemente das regalias que deveriam escandalizar e serem punidas, assistem-se cenas como as da foto que viralizou pelo mundo em que caminhão distribui ossos e restos de carne recolhidos em supermercados da capital fluminense. Os depoimentos são deprimentes. Uma desempregada contou: “tudo está muito caro. Venho aqui porque não tenho mais como comprar… é a nossa única maneira de comer carne no mês”. Para saciar-se dos restos, que, no mês passado não chegaram, anda cerca de uma hora e meia. É, literalmente, um crime que clama aos céus!

É preciso repetir: a pandemia somente piorou o quadro que já vinha mostrando a degradação social em que vivem as populações das periferias, especialmente nas grandes cidades. O desemprego, infelizmente, já se transformou em doença crônica, rondando 15 milhões de pessoas. Sendo que as estatísticas apresentam aqueles que não desistiram de procurar por um cargo remunerado. Estão fora destes números os que se conformaram com seu pouco estudo, não ter capacitação profissional, ser um daqueles grupos que sofre com discriminação, e já nem procuram mais…

Situação em que o vinho vira vinagre… Um amargor na boca por ver o quanto a miséria embrutece. Não consegue sensibilizar quem blindou cargos e funções dizendo serem “legais”, sem reconhecer que são imorais e injustos. Sociedade doente que não se revolta com os gastos de quem nós mesmos elegemos. O fim da pandemia não será o fim de nossos problemas. Resgatar a cidadania de quem chegou ao fundo do posso é caminho longo e difícil para igrejas, associações, sindicatos, partidos políticos. Pessoas de boa vontade que não abrem mão da prática da justiça... e da solidariedade!

Amanda é técnica em comunicação visual

Foi um inverno rigoroso. Além do frio, muita chuva e umidade. A Amanda, com dois meses, estava internada numa unidade de tratamento intensivo para crianças. Tinha nascido há pouco tempo, com dificuldades para respirar e aspirar, o que fazia simultaneamente e, como consequência, se engasgava. Combinei com minha sobrinha Vanessa e sua família que iriam visitá-la no horário da tarde e eu, voltando das aulas da Universidade, ficaria com o período da noite. Recebia no colo uma “trouxinha”, tendo que fazer tudo lentamente em função dos cateteres que a ajudavam a respirar.

Passaram 20 anos e, na noite da última quinta, assisti pela primeira vez uma formatura transmitida pelo YouTube. Não vou dizer que eu seja especialista em formatura, embora tenha sido lembrado em algumas como paraninfo, patrono ou professor homenageado. As longas e cansativas cerimônias agora dão lugar a atividades simples, mantendo todos os protocolos, passando pela apresentação, juramento, discurso do representante de turma, do paraninfo e da autoridade universitária presente. Tinha um outro compromisso, mas não resisti, assisti até o fim… e não me arrependi!

Lá estava a Amanda, recebendo o canudo de técnica integrada em Comunicação Visual. Também haviam formandos da graduação em Multimídia, do Campus do Instituto Federal Santa Catarina, Palhoça Bilíngue. A criança que tomava no colo com o máximo de delicadeza para não lhe causar mais sofrimentos, agora era uma bela mulher, flutuando num sorriso característico por sua simpatia, envolta no azul da sua tranquilidade. Nos 20 anos, juntos, fizeram diversas “formações” e a vida levou a que aprendessem que a família é e continha sendo, por toda uma vida, uma grande escola.

Uma escola onde as dificuldades financeiras, ter que ajudar a cuidar dos irmãos e da casa, também se constituem em desafio para os estudos. O início de um curso profissionalizante é, ainda, um “desmame” do que se passou. Surgem novas responsabilidades. Agora, as cobranças formais não são tão fortes, mas a necessidade de resultados impacta diretamente no bom aproveitamento das disciplinas e conteúdos. Momentos em que se precisa de privacidade, escondido em algum canto, para estudar, entender o que foi repassado e incorporar aos conhecimentos técnicos.

No entanto, ali, eu via um desfile de rostos jovens ainda surpresos que o tempo passou e venceram mais uma etapa da vida. Tentavam colocar em palavras o sentimento de que estavam deixando uma turma que, mal ou bem, durante longo período, foi companheira de jornada. E, aos professores, resta a eterna sensação de que, colocando no mundo mais um grupo para atuar no mercado, são filhos que a gente empurra para tomarem seus rumos, mas que gostaríamos de mantê-los por mais um pouco juntos... serão rostos, vozes, jeitos, que farão falta pelos corredores, pátios e salas de aula.

Que bom, Amanda. Teus esforços e, do jeito deles, também da tua família, deram certo. Tudo o que foi dito como motivação nas palavras dos colegas, paraninfos e direção do Instituto está coberto de razão. É uma mudança que, dificilmente, entenderão agora. Trocar de degrau significa amadurecer e encontrar perspectivas de uma vida adulta. Tios e primos não têm dúvida de que a “Amandinha” está construindo um sonho que vai virar realidade. Deixa que a gente esteja contigo, que façamos nosso os teus sonhos, como uma bênção que somente a vida é capaz de fazer com que vire realidade!

domingo, 3 de outubro de 2021

Um berçário de humanidades

O filme é um clichê romântico. Mulher abandonada resolve continuar com a ideia de uma segunda lua de mel (agora sem o ex) e parte para uma viagem pelo interior da África. Claro que, pelo caminho, aparece um mocinho, com alguma dor a ser curada, tendo purgado parte da sua tristeza e não acreditando mais no amor. “Resgate do coração” envolve pela história simples, humana, com belas imagens e animais, no caso, elefantes, na mira do seu pior predador – o homem – e as maiores vítimas são os mais novos, abandonados e precisando de um “berçário” para a subsistência.

A gente não pode viver somente de assistir estes filmes, mas, de vez enquanto… Fiquei mais aliviado, no final, sem deixar de pensar que se vive um tempo em que se precisa de um “berçário para humanidades...” Lugar onde se viva feliz e ajude outros a viverem bem. Uma utopia, desejo que dificilmente se realiza e, talvez mesmo por este motivo, dê o direito de sonhar. Não somos capazes de viver permanentemente da normalidade ou da suposta racionalidade de que se precisa agir sempre de forma correta, enquadrados aos papéis que a sociedade espera.

Discuti com uma amiga sobre a quantidade de vezes que bati e derrubei alguma coisa. Explicou que isto era consequência do avanço da idade. Lembrei do seu Borges, quando, numa ocasião o deixei com meus pais numa antiga vizinha e não conseguia abrir a porta do carro. Sugeri que tentasse com a outra mão. Deu certo. Brinquei: “coisas da idade!” Olhou debochado: “a outra mão tem a mesma idade!” Não sei se somos propensos para acidentes doméstico, sei que não é preciso tornar a vida um inferno com cuidados que afastam os perigos, mas também a graça e a ventura de se viver.

Uma idosa manda, todos os dias, vídeos de músicas orquestradas que fazem o seu gosto, com belas paisagens e lugares paradisíacos. Tenho que registrar, com muito bom gosto. Pensei: lugares que deve frequentar em sua imaginação. Quantas vezes pensou em percorrê-los, aproveitando sozinha ou na companhia de seus amados. No entanto, hoje, apenas estão presentes em seus desejos, que, infelizmente, nunca virarão realidade. Somos o nosso dia a dia e os nossos anseios sublimados. A realidade fica muito dura quando nossos corações não abrem uma janela para a fantasia e o Infinito!

Falo para grupos da importância de valorizar o “ludus” (brinquedo) e o “ágape” (partilha da comida – refeição). Especialmente para quem já andou por mais tempo nas estradas da vida e precisa que uma aragem de otimismo e felicidade apareça em seus olhos. Lembro da mãe. Deixava tentar todas as vezes que quisesse, mesmo que as anteriores tivessem dado errado. Não importava. Era seu jeito de mostrar que naquele corpo, se acabando com o tempo, para além das racionalidades, habitava um espírito incomodado com a forma como se transformam idosos e doentes em mortos-vivos.

Troco a frase: precisamos de um “berçário de humanidades”. Um lugar onde se reaprenda a viver e se facilite para quem pensa em desistir. A lágrima vertida diante da cena de um filme… a real felicidade pela imagem de um neto que se vê de longe… o dormitar à espera das promessas de vida que não se cumprem… as dores que aparecem nas juntas… E o olhar - o último espaço por onde transborda a fé. Quando o corpo dá sinais de que não tem mais forças e torna-se a luz de uma vela, trêmula, que passa por sobre as palavras, na esperança de receber um derradeiro gesto de carinho!