domingo, 25 de fevereiro de 2018

Um detalhe chamado "viver"

Os cabelos foram se espalhando pelo chão. Alguns bem cuidados, outros nem tanto, emolduravam rostos jovens decididos a entrar na luta contra o câncer. O mais interessante é que os "cabelereiros" eram crianças com a doença e quem perdeu as melenas foram garotos e garotas que participavam de um trote, pois ingressaram na Faculdade de Medicina e queriam humanizar a sua futura área de atuação.
Via-se pelos pequenos rostos que o esforço era grande. Mas a provocação do fotógrafo os encheu de coragem. Também vítimas de câncer, serviram de modelo numa campanha onde encarnariam super-heróis da Liga da Justiça. A felicidade quando viam os pôsteres não estava nas palavras, mas no olhar, nas lágrimas e nos pulinhos com que encaravam os personagens preferidos com o seu rosto!
A mulher que iniciou a quimioterapia deixou de se reunir com amigas com as quais conviveu desde a adolescência. Tinha dificuldades de aceitar a queda do cabelo. Foi convidada para um encontro, relutou, mas acabou convencida. Cerca de 20 delas estavam presentes... Todas com o cabelo raspado... portando uma bandana que caiu quando do demorado e carinhoso abraço que selou a cumplicidade pela vida.
Os meninos da medicina, o fotógrafo, as amigas que partilharam de um instante difícil e dolorido ajudaram a reencontrar um sentido para a luta pela saúde. Fazendo-se presença na vida de pessoas fragilizadas pela dor e a incerteza propuseram-se - talvez sem ter muito claro o jeito - ser arrimo em momentos difíceis, para que não sintam mais uma dor que acompanha a doença: a da solidão.
"Humanizar a Medicina" foi o que se propuseram os estudantes e, durante uma tarde, brincaram fazendo o mesmo que as crianças já tinham sentido na pele: abrir mão da vaidade de arrumar o próprio cabelo. O pequeno super-herói que se extasiou diante do quadro em que sua foto lhe dava poderes também entendeu que a família, os médicos, enfermeiros, fotógrafos estavam a seu lado para que buscasse dentro de si a força necessária para não desistir.
Não importa a idade em que se encontra o paciente. Não importa o estágio em que se encontra a doença. Não importa se o desespero e a tristeza levaram alguém ao fundo do poço. Importa não estar só. Importa compartilhar de um sentimento que exige fé e compreensão, pois a morte assusta se perdemos a razão de existir.
Morrer é somente mais uma etapa quando viver passou a ser o sentido de cada ato, cada pensamento, cada sentimento que humanizam relações e nos transformam em super-heróis do dia a dia. Fazem com que ter ou não ter cabelo não seja o mais importante - insignificante, até - se houver um outro que dê motivo para manter um olhar fixo na solidariedade e na esperança. Um pequeno detalhe chamado "viver"!

domingo, 18 de fevereiro de 2018

O Rio de Janeiro continua lindo...


Os foliões ainda estavam nas ruas a mercê das gangues e dos trombadinhas quando o governo federal decretou intervenção, justificando com a violência que tem números assustadores. Mas deixou um gosto de jogada política já que não tem como solucionar o impasse da previdência social e precisa de uma nova pauta para encarar a mídia.

O Carnaval do Rio de Janeiro traz sempre uma surpresa. Durante anos, com as benesses do setor público, ousou e abusou do luxo (e lixo) encantando quem podia estar na passarela, presente na Marques de Sapucaí, ou assistir pela televisão. 2018 não teve dinheiro dos governos e a violência acabou em intervenção federal.
A falta de recursos vindos especialmente das administrações estaduais e municipais aguçou a criatividade e, sem dever para as edições passadas, livre de amarras, pode ser mais crítico, sem perder estilo e humor. O trabalho foi maior, diminuindo o uso de materiais caros, mas usando alternativas não perdeu o brilho e o glamour.
Uma amiga dizia que a gente não fica "mal acostumado". Por este motivo, quando se fica acomodado a uma situação positiva usava como alternativa: fica "bem acostumado". Os carnavalescos do Rio contavam com a generosidade dos cofres públicos e não tinham motivo para correr atrás do dinheiro.
Agora é
Inúmeras matérias mostram que a violência no Rio é endêmica. Está presente no tecido social que organiza as relações. E não é somente na favela. O morro transita pelos palácios dos governos. Talvez, quando na prisão, a diferença social faça a diferença. Mas deram força à expressão: "juntos e reunidos"!
Com os holofotes do Mundo voltados para a maior exposição de corpos no Carnaval, políticos queriam tirar a sua casquinha. O triste é saber que a segurança é um dos elementos para a solução dos problemas, mas não é o único: fala-se no endurecimento das penas, mas como fica a educação, saúde, moradia?...
O dito popular é de que onde tem o problema também se apresenta a solução: o Cristo Redentor abre os braços e mostra que a intervenção no Rio é sinal de que o Brasil precisa intervir em Brasília. O samba que atravessou a avenida deu o gosto de mudança e joguinhos de cartas marcadas podem ter seus dias contados. Já tem gente presa e ainda eleições em outubro. Quem sabe?...

sobreviver. A fase de vacas gordas acabou e é preciso ganhar a fantasia com o suor do próprio rosto. Então se manifestou o quanto - motivado e vendo um horizonte - o brasileiro é capaz de superar dificuldades e traçar os próprios caminhos. Uma energia que fica inerte no resto do ano e, de alguma forma, precisa ser canalizada para o ser e fazer política.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Com sabor de poesia com rapadura

Na semana passada parei para ouvir com atenção vídeos do cordelista Bráulio Bessa, no programa Fátima Bernardes, com poesias em que mistura o cheiro da terra, sabores da vida e da convivência humana. Foi também a oportunidade em que comuniquei ao Instituto Paulo VI que não cursaria o segundo ano de Teologia.
Depois de me deparar com o primeiro, recorri ao YouTube e fui assistindo encantado àquele nordestino mostrando que fazer  poesia não é apenas revestir de rimas os sentimentos. Mas a busca incansável da palavra mais próxima para que dos olhos transbordem sentidos, inclusive religiosos, também os ligados ao Mistério.
O mesmo que eu procurei ao longo do ano passado em estudos e na convivência nas dependências do Seminário Diocesano. Quando iniciei tinha um objetivo muito claro: a minha formação para auxiliar, especialmente, aqueles que se preparam para a liderança dentro da Igreja Católica: sacerdotes, diáconos e ministros.
O cordelista afirma num de seus poemas que "o tempo é um segredo e acredite: é muito cedo pra dizer tarde demais". Mais: "a corrida da vida, aprende-se a caminhar... a vida já é tão curta, é preciso aproveitar. Esta estranha corrida, que a chegada é a partida e ninguém pode evitar".
Ao longo do ano - como aluno e como professor - me ofereci para discutir os processos didáticos e pedagógicos da formação. Por diversas circunstâncias, as mudanças aconteceram sem a participação tanto do corpo docente, quanto discente, ou, se aconteceu, foi de forma esporádica e sem que se fizesse conjunto.
Bráulio Bessa diz que "aprende na despedida que o sentido desta vida é sempre seguir em frente". Havendo quem melhor possa fazer com que se aperfeiçoe o processo, recolho-me. Não é somente uma questão de projeto burocrático, mas uma mística que se deixa para trás ao contemplar o "acadêmico" em detrimento do pastoral.
Uma das melhores lembranças da infância era meu pai colocando sobre uma pedra uma rapadura e cortando com uma facão. Os pedaços eram disputados e valia a pena o esforço para sorver tanta doçura. Chamar ao quadro de "poesia com rapadura" é misturar literatura com um quê de divino: aguçando todos os sentidos!
Como educador, tento mostrar que aguçar os sentidos é exatamente a capacidade de construir conhecimento necessário para melhorar as relações. Porque, "nunca é tarde pra sonhar... e entender que a esperança nem sempre será visível", pois "a vida é uma corrida que não se corre sozinho, que vencer não é chegar, é aproveitar o caminho"!

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A razão de não perder a esperança

Meio da tarde durante a semana. A campainha toca. Não é horário comum de visitas. Vizinhos e conhecidos sabem que é tempo de tirar a dona França da cama, fazer a higiene e o café. No portão, a alegre surpresa: dona Braulina, a vizinha com seus quase 90 anos, querendo fazer uma visita à sua amiga de longas décadas.
Nas mãos traz duas rosas e um pequeno embrulho. A primeira pergunta é se não está incomodando. Claro que não. Levo-a até a poltrona onde a mãe está recostada. Coloco uma cadeira de tal forma que fiquem quase frente à frente. A mãe em seu estado de letargia, na sonolência onde ouve, mas muito pouco fala.
Dona Braulina com dificuldade de visão (restou-lhe uma vista) e pouca audição, mas que faz questão de estar junto à amiga com a qual teve uma história de convívio na criação dos filhos, trabalhando juntas nos finais de ano nas fábricas de conserva e capacidade de atender àqueles na vila que precisassem de um pouco de atenção.
Duas rosas para serem colocadas na gruta de Nossa Senhora Aparecida - devoção comum - e no pacote um pano de secar louça, feito em saco de farinha, com desenhos de elementos da cozinha. As duas ainda colocam seu esteio na fé, ambas ainda sentem que estão numa casa, dela fazem parte e querem sentir-se úteis.
A visita já sabe que sua amiga pouco ou nada vai lhe falar. Mas vai escutar. Vivem a lição do quadro "Poesia com Rapadura", do programa Fátima Bernardes, onde o repentista poetou: "a vida é uma corrida que não se corre sozinho. Que vencer não é chegar, é aproveitar o caminho".
Elas já percorreram o caminho. Agora olham para trás e veem seus acertos e erros, alegrias e tristezas. Cumpriram - e bem - a sua parte, porque deixaram marcas nas famílias e nas comunidades onde viveram. Estão interligadas pelas teias da vida que as tirou do interior e as fez desbravadoras para buscar dias melhores para seus filhos.
Coloquei as flores no vazo em frente à imagem. Embora não saiba como era o rosto de Maria, creio que não ficaria incomodada se eu pensasse que tinha os traços e o jeito de dona Braulina. Mulher, mãe, que o sofrimento não foi capaz de alquebrar o espírito, ao contrário, as tornou mais experientes e mais capazes de enfrentar a vida.
No tempo que ficou junto da mãe poucas palavras foram ditas, mas muito amor foi sentido. As "Marias" de nosso tempo ainda hoje cumprem sua missão: a mãe continua sendo "mãe"... mesmo que hoje seja hora de retribuir todo o cuidado que já teve pelos filhos. Retribuindo com um doce olhar o carinho que recebe.
Dona Braulina ainda percorre as calçadas da nossa rua sem perder os elos que - muito mais do que a ligar ao passado - alimentam a certeza de que sua existência teve uma razão de ser. Das muitas perdas que foram ficando pelo caminho, soube - mesmo sentindo muita saudade - fazer do presente a razão de não perder a esperança!