domingo, 26 de novembro de 2017

O canto que lava o pranto do Mundo

Manhã de sábado. Depois de muito tempo, visitar a Livraria do Monquelat, uma passadinha para dar uma olhada em leituras para as férias. Claro que uma figura como o próprio Monquelat não admite apenas uma visita, mas um bom papo, com direito a reflexões a respeito da vida, da política, da economia...
O Gustavo é meu cabelereiro. Se ofereceu para cortar o cabelo da mãe, em casa, depois de saber que fazia o mesmo com outras idosas da rua. Mas, também, que visita uma casa de idosos, para dar um trato e "repaginar" velhinhos e velhinhas. O mesmo, com rapazes internados numa clínica para recuperação de dependentes químicos.
Tarde de domingo, passada de olhos pelo celular e lá está um vídeo do Roupa Nova e Roberto Carlos. Em tempos de preparação para o Natal, ouvir o dueto afirmar que "deixe que o canto lave o pranto do Mundo" tem um quê de magia, aquecendo a alma e mostrando que o velho e bom espírito que alimenta o amor ainda existe.
Em comum? O Monquelat dizia que os jovens estão, cada vez mais, "indiferentes", parecendo "programados para existir", alienando-se daquilo que faz a diferença entre viver e vegetar: as experiências nossas e daqueles com os quais convivemos, que amadurecem o próprio sentido do estar aqui e agora. É o fazer história de cada um, que nos diferencia.
O Gustavo é a prova concreta de que "solidariedade", muito mais do que uma palavra, faz parte da capacidade de nos enternecer com a fragilidade dos outros. Diz que foi com a mãe cortando cabelo que a sua família foi criada. Aprendeu e, na próxima vez que for atender aos idosos, pretende formar uma dupla familiar.
Se nos tornarmos mecânicos, com a implantação de um chip que controle até mesmo nossas reações emocionais, vamos perder a essência da música do Roupa Nova: quantas vezes, uma bela canção, uma boa interpretação faz nossos olhos marejarem e nos tornamos mais leves exatamente porque o "canto lavou o pranto do Mundo"?
É exatamente o que é "humano" em nós que dá direito a uma segunda chance. A palavra mágica se chama "amor". Na construção da solidariedade, na sensibilização para as causas para as quais há muito mais omissões do que ações. Dá pra repetir como um mantra o refrão: "deixe que o canto lave o pranto do Mundo. Para trazer perdão e dividir o pão... E fazer a Terra, inteira, feliz e amar!"

domingo, 19 de novembro de 2017

A essência do Evangelho

O papa Francisco pediu que os cristãos celebrassem no domingo (19) o Dia Mundial dos Pobres. Nesta data, a reflexão do Evangelho de Mateus trata dos talentos entregues por Deus a cada um. Foi pontual: "todos somos mendigos do essencial, do amor de Deus que nos dá o sentido da vida e uma vida sem fim. Por isso, também hoje, estendemos a mão para Ele a fim de receber os seus dons”.
Pediu que se olhasse de forma preferencial para as pessoas com dificuldades: "podemos dizer que não me diz respeito, não é problema meu, é culpa da sociedade, passar ao largo quando o irmão está em necessidade, mudar de canal quando um problema sério nos indispõe, indignar-se com o mal, sem fazer nada. Deus, porém, não nos perguntará se sentimos justa indignação, mas se fizemos o bem.”
Defendeu que “amar o pobre significa lutar contra todas as pobrezas, espirituais e materiais”. Sendo o cristão uma autêntica fortaleza, "não de punhos cerrados e braços cruzados, mas mãos operosas e estendidas aos pobres, à carne ferida do Senhor”.
A proposta veio expressa na citação do Evangelho de João: «não amemos com palavras, mas com obras». Para Francisco, o amor não admite álibis: "quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo. Aliás, é bem conhecida a forma de amar do Filho de Deus. Ele nos amou primeiro, a ponto de dar a sua vida por nós”.
Seu diagnóstico: "o mundo não consegue identificar a pobreza, com suas trágicas consequências - sofrimento, marginalização, opressão, violência, torturas, prisão, guerra, privação da liberdade e da dignidade, ignorância, analfabetismo, enfermidades, desemprego, tráfico de pessoas, escravidão, exílio e miséria. A pobreza é fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!"
Coloca o dedo numa ferida aberta: "não se pode permanecer inertes e resignados. Todos estes pobres – como dizia o Beato Paulo VI – pertencem à Igreja por direito evangélico e a obriga à sua opção fundamental". Pede que a sociedade reaja à cultura do descarte, do desperdício e da exclusão, assumindo a cultura do encontro, com gestos concretos de oração e de caridade. Os pobres – alerta Francisco - não são um problema, mas “um recurso para acolher e viver a essência do Evangelho”.

domingo, 12 de novembro de 2017

Porque ainda somos amados


Um amigo disse que tinha chegado aos 85 anos e estava no tempo de morrer. Achando que era brincadeira, perguntei o por quê: "meu pai morreu aos 85. E morreu bem. Minha mãe se arrastou até os 93 e definhou..." Por trás daquilo que alguns julgaram ser um ataque de rabugice estava uma grande verdade: a própria natureza coloca limites na conservação do corpo, em todos os sentidos.
Pode haver exceções. Embora esta seja a regra: ao passar dos 85, mais facilmente começa a se perceber os sinais do envelhecimento, com a debilidade do físico, nem sempre acompanhada da debilidade do espírito. É este desafio que se coloca para a medicina, assim como para profissionais e familiares que acompanham o idoso.

Quem conviveu ou convive com pessoa idosa sabe o quanto é difícil aceitar o fato de não conseguir realizar certas tarefas e precisar de amparo porque a memória lhe prega peças. Há casos em que a pessoa é dócil e, então, a tarefa é mais fácil, embora não menos penosa. Porque quando se restringem os movimentos também começam as restrições da vida social. É a finitude toldando o horizonte da própria vida.

Da experiência com meus pais aprendi muito, especialmente que tudo o que foi apreendido pode ir por água a baixo e necessitar de revisão no dia seguinte. Munir-se de paciência, carinho, companheirismo e solidariedade é regra que impede a soberba, de infantilizar ou coisificar o idoso, mas também de que, na nossa própria perspectiva, o envelhecimento é certo e a morte um futuro que não se tem como descartar.

Quando me perguntaram porque procurei uma pessoa idosa da qual passei afastado a maior parte da vida, já não tinha mais dúvida: hoje, não exercendo função pública, não pode me beneficiar financeiramente e nem em prestígio. Gosto de estar com ela porque fez muito pela minha formação e o que faço satisfaz uma parte das suas necessidades, assim como o meu sentimento de ser, de alguma forma, útil.

A utilidade de um idoso é a sua própria inutilidade. A solidão, em qualquer idade, mas especialmente na velhice, é a negação do direito de ter ao lado alguém que não quer nos empurrar ou puxar, mas apenas estender a mão. No sentido mais elementar de que viver é a repetição incessante de atos que nos comprovam que há sentido até o derradeiro sopro de vida. Exatamente porque ainda somos amados.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Viver e alimentar a fé

A senhora idosa não queria festa no seu aniversário. Receberia filhos e netos para um café da tarde. Mas tinha um pedido: que tocassem as campainhas com o cotovelo. Reunidos, o pedido de explicação. Simples: se tocassem com o cotovelo significava que as mãos estavam bem ocupadas. Com os presentes que esperava receber!
A história foi contada por dom Paulo de Couto, bispo emérito de Montenegro, na noite de domingo (05), ao anunciar a inauguração da capela de Nossa Senhora Aparecida no Seminário Propedêutico (período em que jovens fazem o discernimento se querem candidatar-se ao sacerdócio), disponível também para a comunidade.
Da Catedral de São João Batista até o sopé da montanha foi uma procissão de dez minutos, em que o bispo pediu para lembrarem com carinho e atentos à formação dos rapazes que, num futuro, conduzirão os destinos da Igreja Católica e, hoje, precisam que, muitas vezes, as pessoas cheguem tocando a campainha com o cotovelo.
Não creio que a preocupação de dom Paulo era apenas com as doações. Mas, em comum com a senhora, havia o significado da entrega que não era apenas uma troca de presentes em um aniversário. Mas o instante em que quem dá tem única e exclusivamente esta preocupação: disponibilizar um pouco de si para o outro.
Voltava a Pelotas, depois de uma estada em Caxias e visita ao padre Rômulo (para eles dom Carlos) em Montenegro, e não resisti em continuar a história. Um dos netos que não trouxera presente apareceu alguns dias mais tarde. O porteiro o deixou passar pelo portão e porta do prédio. Já no apartamento, bateu com o cotovelo.
O som foi abafado, mas suficiente para a vó ouvir e quis saber porque não soltara o presente. A explicação: não queria deixar de atender à recomendação, mas sua altura era insuficiente para alcançar a campainha. A criança entendera que a senhora dera uma lição: o importante no dar está em se fazer presente. E compartilhar carinho.
Um presente carrega o tempo gasto em atender a necessidade ou o desejo de alguém, o momento de satisfação da entrega e, depois, a lembrança do seu significado. Que pode ficar como elo para toda uma vida. A comunidade que fez a sua procissão dificilmente vai esquecer a história do cotovelo. Os seminaristas também não.
Afinal, iniciaram uma caminhada em que, de diferentes formas, tocarão campainhas usando o cotovelo, especialmente porque estarão com as mãos carregadas da esperança e da certeza de que este povo conseguiu um dos mais belos presentes: viver e alimentar a própria fé!